Você sabia? n.º 92 - Sexta, 31.12.2004
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Você sabe o que ocorreu com /t/ na passagem do latim para o português? Depende da posição que esse fonema ocupava no vocábulo. Assim, temos:
Em posição inicial – Geralmente, manteve-se: tale > tal, tauru > touro, tegula > telha, tenere > ter, turre > torre.
Em posição medial

 

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Intervocálica – Normalmente, sonorizou-se: acetu > azedo, amata > amada, lutu > lodo, mutu > mudo, rota > roda. Isso deve ter ocorrido no século V e até princípios do VI. Nas formas verbais da segunda pessoa do plural, o /d/ resultante da sonorização caiu em todos os tempos em que permaneceu intervocálico: amatis > amadis > amais. Entretanto, a passagem /t/ > /d/ nem sempre aconteceu: em cautu > couto, /w/, por seu caráter algo consonantal, foi responsável pela preservação de /t/. Quando este era seguido por ditongo crescente, resultou em /z/ ou /s/: ratione > razão, pretiare > prezar, tristitia > tristeza, gratia > graça, militia > milícia, statione > estação. No século III, como afirma Papírio, na combinação ti + vogal, a sonoridade de “ti” era /tsi/ e as palavras eram pronunciadas como se em vez de /t/ houvesse /s/: *definiciones, *terminaciones. Se o vocábulo era escrito com “t” dobrado, /t/ permaneceu: cattu > gato, gutta > gota, matta > mata, mittit > mete, sagittam > seta.
Podemos estranhar por que em várias palavras portuguesas em que /t/ está em posição intervocálica não houve a sonorização desse fonema, como cutucão e pata. Nestes exemplos, tais vocábulos surgiram já em plena vigência do português. Em outros casos, trata-se de empréstimos, como rota (caminho, direção), do antigo francês rote. Outras ainda são palavras de formação erudita, ou seja, apesar de haverem passado por transformações fonéticas pela ação popular, tiveram a forma original latina restaurada pelos sábios durante o renascimento português (séc. XVI), a qual assim convive com a evoluída, com algumas adaptações gráficas. Exemplo é cathedra, que evoluiu para cadeira e depois foi reintroduzida no léxico da língua como tedra.

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Não-intervocálica – Precedido de consoante, /t/ geralmente se manteve: arte > arte, astru > astro, bestia > besta, dictu > dito, multu > muito, sanctu > santo. Quando t + i foi antecedido por consoante, tornou-se /s/: fortiam > força, silentium > seenço (arcaico), tertiarium > terceiro. O grupo latino ct + y tornou-se /is/: destructione > destruão, electione > eleão. Seguido de consoante – geralmente /r/, com que formava grupo consonantal –, /t/ permaneceu: atriu > átrio, mitra > mitra, patrociniu > patrocínio, patronu > patrão, retractione > retração. Às vezes, no entanto, os falantes sentiram o grupo todo como intervocálico e assim /t/ passou a /d/: latrone > ladrão, matrastra > madrasta, petra > pedra, putre > podre, **vitriu > vidro. Há ainda outros fenômenos que se referem ao grupo /tr/, descritos na bibliografia indicada, para a qual remetemos o leitor.

Em posição final – Sofreu apócope ainda no latim vulgar: amat > ama, bibit > bebe, cantant > cantam, legit > lê, post > pois.
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* Apenas para demonstrar a pronúncia.
** Forma não-documentada.

Leia mais em:
Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa, de Antônio Geraldo da Cunha.
Dicionário latino-português, de Francisco Torrinha.
Do latim ao português, de Edwin B. Williams.
Do latim ao português sem dicionário, de Nelson Attílio Ubiali.
Gramática histórica, de Dolores Garcia Carvalho e Manoel Nascimento.
Gramática histórica, de Ismael de Lima Coutinho.
Saite do prof. Paulo Hernandes, pág. Você sabia? n.º 52.
Saite do prof. Paulo Hernandes, pág. Você sabia? n.º 73.