Você sabia? n.º 79 - Sexta, 28.11.2003
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Você sabia... que os artigos definidos portugueses provêm de pronomes demonstrativos latinos? Pois é... Vejamos como isso se passou.

No padrão formal do latim culto (expressão escrita do latim erudito ou “clássico”), havia as formas pronominais ĭlle, ĭlla, ĭllud  (aquele, aquela, aquilo), para o caso nominativo singular do masculino, feminino e neutro. Pois bem: sabemos que a maioria dos vocábulos portugueses origina-se do caso acusativo, de sorte que o que recebemos do latim e que se transformou nos artigos definidos proveio das flexões ĭllum/ĭllos e ĭllam/ĭllas (masculino singular e plural e feminino singular e plural). A esta altura, você pode estar-se perguntando: ué, mas por que pronome demonstrativo deu origem a artigo em português? Pela simples razão de esse uso já estar ocorrendo no latim vulgar, isto é, na modalidade popular e mesmo na coloquial (da língua culta), onde já havia caído o “m” final. Assim, tivemos, ainda no latim, ĭllu e ĭlla, no acusativo singular. Como o ĭ (“i” breve) latino resultou em português quase sempre em “e”, além de na escrita a consoante dupla “ll” ter-se reduzido a “l”, os estudiosos supõem terem existido as formas – não-documentadas – elo, ela, elos e elas.

Acontece que elo e ela e seus plurais muitas vezes localizavam-se, na frase, entre palavras. Como nessa condição tornavam-se átonas, acabaram perdendo a vogal inicial ainda no latim vulgar, resultando em lo, la, los, las. A posição intervocabular favoreceu a continuidade das transformações: em situações como em “todo lo campo” e “vi la casa”, a tendência generalizada foi a queda do “l”: “todo o campo” e “vi a casa”. A presença imediatamente anterior de flexões verbais terminadas em vogal, de preposições como a, de e para, de todo/toda contribuiu para tal queda. A combinação da preposição per com lo fez com que /r/ se assimilasse, isto é, se identificasse com /l/ e disso resultasse pello. A simplificação dos “ll” deu o atual pelo (por + o). A princípio, essas formas evoluídas ocorriam apenas em posição intervocabular, mas depois se irradiaram para início de frases: “O campo é bonito” e “A casa está cheia”.

O fato de a evolução do artigo estar intimamente ligada à ocorrência de vogal ou de consoantes finais como “r”, “s” e “n” de palavras precedentes faz-nos supor que ele se modificou especialmente em decorrência da localização freqüente entre sílabas tônicas ou próximo delas, como em “amei o filho” e “todo o amor” (WILLIAMS, 1975). Note também que a evolução dos pronomes demonstrativos, alguns dos quais desembocaram nos atuais “o, a, os, as” (como em pintei-o, cortei-a), ajudou a transformação do artigo em virtude da identidade fônica. Observe ainda a sobrevivência de formas arcaicas, como “cortá-lo” e “beijá-la”.


Leia mais em:
Do latim ao português, de Edwin B. Williams, § 137.
Gramática histórica, de Ismael de Lima Coutinho, § 452.
Gramática latina, de Napoleão Mendes de Almeida, § 205 (para as declinações de ĭlle, ĭlla e ĭllud).