Você sabia? n.º 97 - Sexta, 27.05.2005
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Você sabia... que a maior parte das palavras portuguesas provêm do caso acusativo latino, mas algumas são remanescentes do nominativo? Vamos por partes.

Como sabemos, no latim erudito ou clássico, a um morfema lexical agregavam-se desinências que indicavam a função sintática que a palavra exercia na frase. Essas funções recebem o nome de “casos”. Exemplifiquemos com um nome, como Paulus. Cada desinência que ele apresenta aponta para um caso, a saber:

Nome flexionado
Paulus
Pauli
Paulo
Paulum
Paule
Paulo
Desinência
-us
-i
-o
-um
-e
-o
Caso
nominativo
genitivo
dativo
acusativo
vocativo
ablativo
Função sintática
sujeito
adjunto adnominal de posse
objeto indireto
objeto direto
vocativo
adjunto adverbial (com Paulo, em Paulo)

Repare que há dois casos que têm idêntica desinência, mas o contexto precisava o sentido sem risco de confusão.

Havia outras desinências para esses casos e cada conjunto delas chama-se “declinação”. Em latim, os nomes são enunciados, isto é, apresentados no nominativo e no genitivo. Assim, conforme a desinência do genitivo, sabe-se a que declinação a palavra pertence: -æ é da primeira declinação; -i, da segunda;-is, da terceira, -us, da quarta e -ei, da quinta. O exemplo acima mostra que a palavra Paulus, Pauli era da segunda declinação do latim erudito.

Pois bem, o povo inculto devia achar complicado tal esquema e, movido pela lei do menor esforço, tratou de simplificar isso. Dessa forma, no latim popular ou vulgar, aquelas flexões, ou seja, os casos reduziram-se a dois: o nominativo e o acusativo. A falta dos demais casos foi compensada com o uso de preposições.

Acontece que, ainda em razão da lei do menor esforço, no próprio latim vulgar, houve apócopes em conseqüência das quais não foi mais possível distinguir, nos nomes, o nominativo do acusativo. Voltemos ao exemplo dado: em Paulus, houve apócope do /s/ e do /m/. Por conseguinte, a forma transformada “Paulu” tornou-se idêntica no nominativo e no acusativo. Isso provocou confusão entre os falantes, que acabaram por achar melhor abandonar o nominativo. Restou, portanto, somente o acusativo. É dele que provém a imensa maioria das palavras portuguesas de origem latina e é por isso que ele é chamado, em relação ao português, caso lexicogênico, isto é, gerador do léxico. Por exemplo, a palavra “árvore” provém do acusativo arborem > arbore; “templo”, do acusativo templum > templu; ”vida”, do acusativo vitam > vita, etc. Em todas elas, houve apócope do /m/.

Contudo, algumas das palavras latinas no nominativo – o caso do sujeito, lembre-se – resistiram e mantiveram-se no português ou foram neste reintroduzidas pela via erudita, como Carlos (Carolus, i), câncer (cancer, i), demo (dæmon, is), Deus (Deus, i), Marcos (Marcus, i), mestre (magister, i), Nero (Nero, is). Observemos que o /s/ de nomes próprios, como Carlos e Marcos, denuncia a fonte nominativa. Notemos também que “câncer” tem procedência erudita, pois a forma evoluída, popular, é cancro (do acusativo cancru), que tem outro sentido. Os pronomes pessoais do caso reto e os demonstrativos também se originam do nominativo.


Leia mais em:
Do latim ao português, de Edwin B. Williams, §121.
Gramática histórica, de Dolores Garcia Carvalho e Manoel Nascimento, capítulo “Morfologia histórica”, I.
                                      Quanto aos nomes, 1. Os casos.