Você sabia... que a maior
parte das palavras portuguesas provêm do caso acusativo
latino, mas algumas são remanescentes do nominativo?
Vamos por partes.
Como sabemos, no latim erudito ou clássico, a um morfema
lexical agregavam-se desinências
que indicavam a função sintática que
a palavra exercia na frase. Essas funções recebem
o nome de “casos”. Exemplifiquemos com um nome,
como Paulus. Cada desinência que ele apresenta
aponta para um caso, a saber:
Nome flexionado
Paulus
Pauli
Paulo
Paulum
Paule
Paulo |
Desinência
-us
-i
-o
-um
-e
-o |
Caso
nominativo
genitivo
dativo
acusativo
vocativo
ablativo |
Função sintática
sujeito
adjunto adnominal de posse
objeto indireto
objeto direto
vocativo
adjunto adverbial (com Paulo, em Paulo)
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Repare que há dois casos que têm idêntica
desinência, mas o contexto precisava o sentido sem risco
de confusão.
Havia outras desinências para esses casos e cada conjunto
delas chama-se “declinação”. Em
latim, os nomes são enunciados, isto é, apresentados
no nominativo e no genitivo. Assim, conforme a desinência
do genitivo, sabe-se a que declinação a palavra
pertence: -æ é da primeira declinação;
-i, da segunda;-is, da terceira, -us,
da quarta e -ei, da quinta. O exemplo acima mostra
que a palavra Paulus, Pauli
era da segunda declinação do latim erudito.
Pois bem, o povo inculto devia achar complicado tal esquema
e, movido pela lei do menor esforço, tratou de simplificar
isso. Dessa forma, no latim popular ou vulgar, aquelas flexões,
ou seja, os casos reduziram-se a dois: o nominativo e o acusativo.
A falta dos demais casos foi compensada com o uso de preposições.
Acontece que, ainda em razão da lei do menor esforço,
no próprio latim vulgar, houve apócopes
em conseqüência das quais não foi mais possível
distinguir, nos nomes, o nominativo do acusativo. Voltemos
ao exemplo dado: em Paulus, houve apócope do /s/ e
do /m/. Por conseguinte, a forma transformada “Paulu”
tornou-se idêntica no nominativo e no acusativo. Isso
provocou confusão entre os falantes, que acabaram por
achar melhor abandonar o nominativo. Restou, portanto, somente
o acusativo. É dele que provém a imensa maioria
das palavras portuguesas de origem latina e é por isso
que ele é chamado, em relação ao português,
caso lexicogênico, isto é, gerador do
léxico. Por exemplo, a palavra “árvore”
provém do acusativo arborem > arbore;
“templo”, do acusativo templum > templu;
”vida”, do acusativo vitam > vita,
etc. Em todas elas, houve apócope do /m/.
Contudo, algumas das palavras latinas no nominativo –
o caso do sujeito, lembre-se – resistiram e mantiveram-se
no português ou foram neste reintroduzidas pela via
erudita, como Carlos (Carolus, i), câncer
(cancer, i), demo (dæmon, is), Deus
(Deus, i), Marcos (Marcus, i), mestre (magister,
i), Nero (Nero, is). Observemos que o /s/ de nomes
próprios, como Carlos e Marcos, denuncia a fonte nominativa.
Notemos também que “câncer” tem procedência
erudita, pois a forma evoluída, popular, é cancro
(do acusativo cancru), que tem outro sentido. Os
pronomes pessoais do caso reto e os demonstrativos também
se originam do nominativo.
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