Níveis hierárquicos
da linguagem verbal
No estudo de uma língua natural – por exemplo,
o português –, convém ter em mente a existência
de níveis hierárquicos, que lhe possibilitam
a descrição de forma científica. Isso
é especialmente importante para o professor, mais do
que para o aluno. Vamos explorar esse tema, tratado com bastante
propriedade pelo saudoso semanticista A. J. Greimas, que tanto
contribuiu para a Lingüística, especialmente para
a Semântica.
Partamos da língua que será objeto de nosso
estudo, doravante chamada “língua-objeto”.
Como é o português que aqui nos interessa, nossos
exemplos nele se situarão. A oração “Laurinha
pegou o copo” encontra-se no nível da dita língua-objeto.
Isso porque as unidades lexicais, isto é, os vocábulos
que a constituem descrevem a realidade em que estamos inseridos,
o universo extralingüístico, o que nos rodeia.
Dessa forma, “Laurinha” refere-se a uma pessoa
do sexo feminino, “pegou” expressa ação
que ela praticou em determinado momento e “o copo”
traduz aquilo que Laurinha pegou, o objeto dessa ação.
Essas unidades localizam-se no nível primário,
o nível lingüístico.
Vimos que no parágrafo anterior emitimos mensagens
para explicar o sentido que os vocábulos constantes
da oração exemplificada nela apresentam: o que
é “Laurinha”, “pegou” e “o
copo”. Dissemos que a palavra “Laurinha”
representa uma pessoa do sexo feminino e que a palavra “pegou”
expressa ação que ela praticou. Trata-se, dessa
forma, de linguagem falando de linguagem ou, para sermos mais
precisos, de metalinguagem. Mas essa metalinguagem
é natural, emprega palavras da própria língua-objeto,
como “ação” e “praticou”.
Na descrição científica de uma língua
natural, os especialistas – os gramáticos –
utilizam outra linguagem, construída e o mais possível
distante do vocabulário comum da língua-objeto.
Estamos falando da metalinguagem científica.
A metalinguagem situa-se em nível hierárquico
superior, nível secundário, o nível metalingüístico.
No nível metalingüístico, as mensagens
não se referem ao universo que nos rodeia (descrito
pela língua-objeto), mas à própria língua-objeto.
É, como já dissemos, a linguagem falando da
linguagem. R. Jakobson percebeu isso muito bem ao elaborar
seu modelo de comunicação e estabelecer as funções
da linguagem, uma das quais é a função
metalingüística. Ela centra-se na própria
língua. (Leia também no Glossário
Gramatical o verbete “Função da linguagem”.)
É por isso que os gramáticos utilizam termos
– é exatamente disso de que se trata, de terminologia
– estranhos, como interjeição,
fonema e adjunto adnominal. Eles constituem
linguagem técnica, específica e o ideal é
que sejam unívocos, quer dizer, tenham somente um significado.
Infelizmente, as coisas não se passam exatamente assim
muitas vezes, a exemplo de sujeito e predicado,
que em outros contextos têm sentidos distintos do gramatical.
Na terminologia lingüística, morfema
tem diferentes significados, conforme a escola de pensamento
que o utiliza: “unidade do nível morfológico”
(neste caso, equivale, grosso modo, a “palavra”),
“segmento da palavra que se refere à realidade
extralingüística ou intralingüística”
(neste sentido, pode-se classificar como morfema lexical –
menin- – ou gramatical – -o,
-a) ou ainda “segmento da palavra que possui
função estritamente gramatical (-o, -a,
psico-, -inho)”. O termo morfema não
apresenta, portanto, a univocidade que seria desejável.
Muito bem. Então, termos como interjeição,
fonema e adjunto adnominal pertencem à
linguagem utilizada na descrição da nossa língua-objeto
(nível metalingüístico) e precisam de definição.
Assim, podemos, em princípio, dizer que interjeição
é “palavra que exprime emoções,
estados d’alma, manifestações do nosso
íntimo”; fonema é “som da língua”
e adjunto adnominal é “termo acessório
da oração que caracteriza ou determina o substantivo”.
Estamos agora usando outra linguagem para falar, para explicar,
traduzir a metalinguagem. Esta nova linguagem situa-se em
nível hierárquico mais acima. Trata-se da meta-metalinguagem,
que explica a metalinguagem.
Voltemos à oração “Laurinha pegou
o copo”. A Gramática ensina que nela “Laurinha”
é seu sujeito. Mas o que significa “sujeito”?
Napoleão Mendes de Almeida afirma ser sujeito “a
pessoa ou coisa sobre a qual se faz alguma declaração”
(ALMEIDA, 1999, § 650). Celso Cunha diz que “o
sujeito é o ser sobre o qual se faz uma declaração”
(CUNHA, 2000, p. 119). Já Domingos P. Cegalla informa
que “sujeito é o ser do qual se diz alguma coisa”
(CEGALLA, 2000, p. 297). Essas definições, que
traduzem o sentido de termo metalingüístico, situam-se,
portanto, no nível terciário, no nível
meta-metalínguístico.
Mas o especialista não considera qualquer afirmação
como “científica” se ela não for
comprovadamente verificável e coerente. É preciso
checar a validade das definições. Isso só
pode ser feito em outra instância, isto é, em
nível hierárquico superior, no nível
epistemológico.
Acabamos de ver que tanto Celso Cunha como Cegalla declaram
que o sujeito é um “ser”. É mesmo?
No período “Saudade é sentimento gostoso
e ao mesmo tempo faz doer”, consideremos a oração
“Saudade é sentimento gostoso”. Sem dúvida,
seu sujeito é “saudade”. Saudade é
“ser”? O Aurélio consigna que “ser”
é “o que existe ou supomos existir”, “aquilo
que é real” ou “o que se põe como
existente”. O Houaiss diz que “ser” é
“aquilo que realmente existe” ou “aquilo
que possui realidade”. Se a saudade é algo real
ou que tem existência, ela pode ser considerada “ser”.
Neste caso, aqueles gramáticos estão dizendo
algo coerente, que pode ser considerado válido. Entretanto,
teríamos ainda, para realizar procedimento completo,
de verificar também a consistência das definições
da palavra “ser” conforme registrada pelos lexicógrafos
(dicionaristas) mencionados.
Lá atrás, afirmou-se que “fonema é
som da língua”. Será? A teoria lingüística
declara que o som é realidade física, extralingüística,
algo concreto, que pode ser medido e registrado. O fonema
é função, conceito abstrato. Portanto,
quem define fonema como “som” não pode
ser questionado?
Vimos assim que a discussão onde se questiona a validade
das definições situa-se em nível quaternário,
no nível epistemológico. Evidentemente, o aprendiz
da norma culta da língua não necessita enveredar
por esses meandros da Filosofia – filosofia da comunicação
e da linguagem –, mas é bom o professor ter clareza
sobre essas distinções para executar seu trabalho
com segurança e proficiência, com “pé
no chão”.
Por fim, é oportuno esclarecer que as proposições
teóricas em que este texto se baseou, de autoria do
eminente semanticista A. J. Greimas, focaram especificamente
a formulação de descrição semântica
verdadeiramente científica. Contudo, consideramos perfeitamente
possível extrapolar seu arcabouço para outros
níveis gramaticais.
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