Ciúmes e saudades
É de estranhar e mesmo tende-se a considerar incorreto
o uso no plural de nomes como os acima, já que ambos
expressam conceitos abstratos, sentimentos, que, como tais,
são considerados "incontáveis". Como
contar o ciúme e a saudade para pluralizá-los:
dois ciúmes, três saudades? Lemos, nos comentários
do mestre Napoleão Mendes de Almeida, que "Os
substantivos que exprimem noções abstratas,
vícios e virtudes empregam-se no singular: a prudência,
a preguiça, a caridade, a ociosidade, a fortaleza"
(ALMEIDA, 1981: 286). Mais adiante, porém, ele acrescenta:
"Tratando-se de virtudes, vícios, de certas
disposições, sentimentos e paixões,
muito é para notado que, em alguns casos, a mesma
palavra, empregada no singular ou plural, não designa
de todo o ponto a mesma noção, mas dois aspectos
diferentes por ela indicados nos dois números, como
tão ao claro no-lo dão a ver os modelos do
bom falar: 'Deixando as armas e as armaduras, a liberdade
e as liberdades da vida, se vestiu de um hábito
religioso' (Vieira)".
Daí verifica-se que certos nomes abstratos, quando
empregados no plural, adquirem sentido algo diferente. Assim,
tem-se liberdade, há pouco citado, como vocábulo
designativo de conceito bem amplo e geral. No plural, designaria
as várias liberdades, isto é, direitos a que
tem o indivíduo: liberdade de ir e vir, de pensamento,
de expressão, de credo religioso, etc., mas também
intimidades sensuais, como em "Ei, não te dei
essas liberdades!". Da mesma forma, tome-se a
palavra amor, conceito geral e abstrato. Contudo, no
plural - amores -, já se tem sentido diferente,
pessoas a quem se dedica amor: "Zequinha e seus dois
amores". O ato de lembrar é lembrança:
"Tenho vaga lembrança desse fato".
No plural, além de recordações, também
pode significar cumprimentos, recomendações:
"Dê lembranças minhas a sua família".
Se o plural de substantivos desse tipo não acarretar
mudança de sentido, é indiferente usá-los
no singular ou no plural: o ciúme ou os ciúmes,
muita saudade ou muitas saudades, apesar do
que foi dito no primeiro parágrafo. E por que isso?
Porque a tendência é para o plural mesmo. Recorremos
novamente ao prof. Napoleão, que testemunha:
"É disso confirmação o fato de
outras palavras, designativas de disposições
e sentimentos de espírito, quando nenhuma diferença
de sentido implica sua flexão numérica, serem
a pouco e pouco substituídas pelo plural. Tal se
deu com parabém, com pêsame,
com felicitação, nomes que, dantes
empregados no singular ('Vossa senhoria me dá o pêsame
dos achados com que vivo, e juntamente o parabém
da enfermidade com que hei de morrer' - Vieira), são
hoje usados no plural. Saudade vai sofrendo idêntica
adaptação; já não dizemos que
um dia só o plural se venha usar, mas por ora nada
há que opor ao emprego da flexão numérica".
(Idem, ibidem)
E por que essa tendência ao plural de nomes abstratos,
"não-contáveis", portanto? Possivelmente,
porque na mente dos falantes o plural expresse as reiteradas
situações em que o sentimento ou a emoção
ocorrem: ciúmes e saudades - vários
momentos de ciúme ou de saudade. Pode ser também
que, com o plural, se reforcem aquelas idéias ou se
lhes acentue a intensidade: muito ciúme ou saudade.
Já outros nomes concretos, porém, como chope,
clipe e videoclipe (a propósito, os três,
estrangeirismos aportuguesados), são
usados no singular ou no plural conforme designem, respectivamente,
uma ou mais unidades: um chope, dois chopes; um clipe,
dois clipes, um videoclipe, dois videoclipes.
Para concluir, podemos admitir a pluralização
de nomes abstratos designativos de sentimentos e emoções,
com o cuidado de verificar se não mudam de sentido
nessa condição. Há autores que discordam
desse ponto de vista, como Luiz Antonio Sacconi. Entretanto,
preferimos acompanhar o posicionamento do prof. Napoleão
e assim não remar contra a correnteza.
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